Existe uma prática comunicativa bastante comum entre militares de Forças Armadas de diversos países do mundo. A mesma prática é verdadeira no Exército Brasileiro: a utilização de brados de guerra durante os intercâmbios interacionais.
Inúmeros brados são adotados na caserna.
A adoção destes ou daqueles, a meu ver, nada tem de arbitrária,
dependendo, entre outros aspectos, da identidade do grupo que os usa. Há
brados característicos dos integrantes de determinadas tropas, como a
de montanha, por exemplo. Algumas organizações militares, assim como as
unidades subordinadas ao Comando Militar da Amazônia; a Brigada de
Infantaria Pára-quedista, no Rio de Janeiro; os Regimentos e Esquadrões
de Cavalaria por todo o Brasil; o Comando de Operações Especiais, em
Goiânia, entre outros, adotam seus brados característicos, que, com o
passar dos anos, tornam-se parte das tradições e até mesmo da história
de cada organização militar.
Tomemos como exemplo o brado “BRASIL”.
Ele é usado em inúmeras situações interacionais, parecendo “substituir”
uma fala menos opaca, aparentemente mais lógica ou compreensível aos que
não fazem parte do grupo.
“BRASIL!” é enunciado em cumprimentos
entre militares do tipo “Bom dia”, “Boa tarde”. Igualmente parece ser
usado no lugar de “Obrigada”, “De nada”, “Vamos lá!”, “Força!”, “Ânimo”,
“Sim, senhor”, “Não, senhor”, “Estou bem”, “Estou mal”, “BRASIL!”. O
mesmo brado faz-se ouvir também como resposta a qualquer ordem recebida
(“Tenente, reúna todos os homens do seu pelotão e cerre comigo em 5
minutos”), além de ser proferido como exclamações mediante fatos e
acontecimentos surpreendentes, positivos ou não (“FO negativo pra
você!”). “BRASIL!” poderia ser proferido e “entendido” tanto como pronta
resposta a uma ordem, quanto como resposta a uma simples colocação em
uma conversa entre pares, do tipo expressão de contentamento ou
descontentamento, para concordar ou discordar, repreender, gratificar,
elogiar, para conferir um tom jocoso ou um tom sério à interação.
Enfim, parafraseando o filósofo Derrida, quando se referia à desconstrução (“Desconstrução é tudo”): “BRASIL!” é tudo.
Atentemos, porém, para um intrigante
“senão” cético que ameaça a legitimidade dos brados de guerra da
caserna. Já que a mesma forma de expressão pode ser proferida em uma
infinidade de situações interacionais, tomando significados por vezes
antagônicos, é seguro que justamente em interações baseadas nos pilares
da hierarquia e da disciplina, em que impera a certeza da verdade,
fiar-se no brado? O brado realmente funciona nas interações mesmo com
todo o deslizamento de sentido que oferece dadas as diferentes e
contraditórias situações em que é empregado? Eles constroem verdades,
mundos e identidades ou apenas denotam o enfeitiçamento do qual a
linguagem é capaz? Não seria o brado uma ilusão para conferir identidade
a quem o usa?
Em artigo com o mesmo título do texto
deste blog, ofereço um estudo detalhado do caso das interações com
brados de guerra. Nele, examinei a dicotomia entre o pensamento cético e
o pensamento essencialista sobre a linguagem, buscando, em
Wittgenstein, uma perspectiva alternativa que permita superar essa
oposição binária. A íntegra do artigo poderá ser consultada tão logo
seja publicada em periódico da AMAN. Por hora, ofereço o texto sobre o
qual meu leitor se debruça.
O ceticismo linguístico é a descrença na
potência da linguagem como um lugar de compreensão. Diferentemente da
ideia dos filósofos essencialistas, o ceticismo linguístico postula que a
linguagem não se presta a dizer nem o real nem a verdade, já que sobre
“real” e “verdade” também paira a dúvida cética. Posto que a descrença
na potência da linguagem como lugar para a compreensão tem sido, ao
longo da história, uma sombra nos espectros epistemológico e ontológico
de “certezas”, volto ao estudo de caso em questão.
Ao observar mais atentamente as
interações nas quais o brado de guerra é enunciado, tal discussão faz-se
bastante oportuna. Sendo tão fluido a ponto de adaptar-se a enquadres
antagônicos, qual fosse líquido ou gasoso, o “poder de fogo”
comunicativo do brado de guerra pode denunciar a desconfiança em relação
à linguagem, trazendo tal dúvida às trincheiras deste trabalho. Assim,
respeito a posição do cético e, para não ocorrer em argumentos que
trivializam esta posição, ofereço a seguir uma leitura cética do caso
que estudo.
Parafraseando Oswaldo Porchat, ao
duvidar dos discursos das filosofias, é natural, então, que eu seja
tentada a ver nessas interações com brados de guerra meros jogos de
palavras, jogos engenhosos e complicados, mas que, uma vez analisados,
não posso mais levar a sério. Brados de guerra seriam brinquedos com a
linguagem usados por pessoas enfeitiçadas e seduzidas pela ilusão que
tais brinquedos criam.
Na visão do cético, as interações com
brados de guerra constituem “o teatro do parecer ser” proporcionado pelo
feitiço que a palavra evoca. Qualquer sentido que o brado pudesse
trazer seria aparência, ilusão de comunicação, compreensão ou
entendimento. Esta peça teatral encenaria um mundo, de acordo com
Montaigne, em “Apologia a Raymond Sebond”, criando uma espécie de
redoma. Segundo este filósofo, a verdade (e também a verdade do brado)
estaria muito distante e nosso conhecimento acerca dela estaria
submetido à fragilidade dos nossos sentidos e paixões.
Como confiar na verdade evocada por um
brado de guerra que ao ser enunciado traz consigo as almas apaixonadas
dos que o pronunciam, pessoas iludidas por seus próprios sentidos? Que
razão, afinal, podem oferecer interações mediadas pelos sentidos e pelas
emoções humanas?
A posição cética gera, assim, verdadeiro
terror. Aceitá-la placidamente na contemporaneidade, momento em que a
linguagem é o alvo desta artilharia de dúvidas, seria o mesmo que nos
perder na deriva interpretativa da literatura, de tudo o que é escrito
ou falado. A deriva interpretativa levaria também ao relativismo moral,
uma vez que não haveria crédito para a interpretação de leis ou códigos
de conduta. Na filosofia da ciência, observaríamos a precariedade da
verdade científica. Na teoria antropológica, as dúvidas sobre o que vem a
ser uma cultura impediriam qualquer estudo de ser realizado. O cético
gera o caos.
Certo é, porém, que o brado funciona, sim! O brado tem valor real nas
interações entre militares. Proponho aqui uma visão sinóptica da
linguagem, isto é, ao estudar as interações entre militares com atenção
aos brados de guerra por eles enunciados, todas as respostas de que
preciso para entender o que se passa só poderão ser encontradas na
interação em si. Nada precisa ser buscado fora do jogo, pois nada existe
que não no jogo.
Qual um jogo, a linguagem da caserna
também possui regras constitutivas. Regras interacionais, regras da
conversação, culturalmente combinadas, contextuais e situadas. As
possibilidades de utilização do brado “BRASIL!” são infinitas, porém,
devem obedecer a uma regra conversacional para que possam fazer sentido.
Uma vez capaz de usar o brado em uma interação, são sabidas as regras e
já se compreende todo o sistema, isso porque os jogos de linguagem
estão imersos em nossa forma de vida. As formas de vida são as práticas
de uma determinada comunidade linguística, como é o caso da comunidade
formada por militares de um mesmo quartel, que conseguem se comunicar e
dar novos lances nos jogos de linguagem combinados no fluxo da vida de
suas comunidades interpretativas.
O que se vê é que os brados de guerra
funcionam nos jogos de linguagem em que são empregados. Nesta comunidade
interpretativa, a caserna, os brados soam pertinentes e fazem sentido
para aqueles que os proferem envolvidos nas interações.
Os membros da caserna parecem se
entender, ou parecem interpretar, sem maiores dificuldades, o
significado do brado em suas infinitas possibilidades de enunciação,
prosseguindo na interação, sendo capazes de dar o outro lance neste jogo
de linguagem. O brado, ainda que seu sentido seja deslizante, fluido ou
mutante, funciona em qualquer interação, confere identidade, sensação
de pertencimento, reforça e mantém laços e espírito de corpo, condição
fundamental para a sobrevivência de qualquer instituição cujos pilares
baseiam-se em valores socialmente construídos. O signo linguístico, no
corpo do brado de guerra, faz reverberar a ideologia institucional.
Funciona como catarse em momentos de vibração da tropa. Ressoa imputando
valores e qualidades a quem o pronuncia. A enunciação do brado traz
consigo uma realidade ideológica que não pode calar, que exige ser
ouvida. O brado religa visões de mundo, consciências, ideologias,
identidades; religa também as partes constituintes de organizações
socioculturais, estruturações político-econômicas, modos de vida e
sistemas pedagógicos. Por ser signo, o brado constitui um instrumento
racional e vivo da sociedade em foco, é epifania ideológica cada vez que
é pronunciado.
Brados de guerra proporcionam, no
mínimo, trocas interacionais, construindo pontes interpessoais valiosas
entre comandantes e comandados, entre pares. O Brado é uma ferramenta
linguistica a ser empregada de forma perspicaz pelo líder. Brado, logo
existo! Brados, assim entendidos, livram-nos de um solipsismo que
abriria abismos epistemológicos e ontológicos. E isso já seria o
bastante quando o que se pretendia investigar era a potência da
linguagem como lugar para o entendimento. Afinal, ceticismo em excesso
também é uma forma de crendice. Como diria Wittgenstein, há que se
chegar à rocha dura.
“BRASIL!”
“BRASIL!”
TC Daniela Bruno Corbari Corrêa é da turma de 1993 da EsAEx. Atualmente
servindo na AMAN, na Seção de Pesquisa Acadêmica e Doutrina. É Doutora
em Linguística pela PUC-Rio (2010), com a tese: "Brasil acima de tudo!
Narrativa e Construção de Identidades; o Combatente Paraquedista do
Exército Brasileiro. É Mestre em Linguística pela PUC-Rio (2005), com a
dissertação:"Discurso Pedagógico, Prática de significação Ideológica:
Uma visão da Construção de identidade em Contexto Educacional Militar".
Possui pós-graduação em Língua Inglesa, pela Universidade de Taubaté
(2000), em Didática do Ensino Superior, pela Faculdade Dom Bosco (1998) e
em Psicopedagogia pela UFRJ (1999). Organizações Militares em que já
serviu: AMAN; IME; CMB; Escola de Idiomas das Forças Armadas Canadenses,
Base Borden, Ontário, onde foi professora; e Base Saint-Jean, Quebec,
onde exerceu a função de especialista em desenvolvimento de currículo
para o ensino de Língua Inglesa para Estrangeiros.