1º Ten Guilherme Gonçalves dos Santos Diniz _Exército Brasileiro
"Nós, que conhecemos de ouvido a consciência de outrem, não temos a pretensão de julgar o que nos está escondido." Santo Agostinho, A Cidade de Deus, Vol. I.
"Nesse terreno, a sinceridade se
impõe porque escrever memórias é um ajuste de contas do eu com o eu ─ e é
ilícito mentir a si mesmo." Pedro Nava, Beira-Mar, Memórias IV.
Em relação aos militares brasileiros que se dedicaram ao ofício das
letras, o volume autobiográfico por eles produzido, considerando todas
as vertentes do gênero memorialístico (v.g. diários, cartas), é
escasso. Em vista da profusão e diversidade de enfrentamentos bélicos
nos quais nossas Forças Armadas estiveram envolvidas — para uma
catalogação pormenorizada e sistemática, o “Dicionário de Batalhas
Brasileiras”, escrito por Hernâni Donato, continua insuperável
—, são relativamente poucos os relatos dos agentes primários ligados a
esses conflitos.
Ainda que existam biografias em profusão, sobretudo quando
relacionadas aos patronos das Forças Armadas — grande parte publicadas
pela Biblioteca do Exército —, os relatos em primeira pessoa,
como ressaltou oportunamente Pedro Calmon, são parcos. Por exemplo,
Francisco de Paula Cidade, na importante obra “Síntese de Três Séculos
de Literatura Militar Brasileira”, busca fazer um inventário
das principais produções literárias de caráter militar produzidas desde
os enfrentamos coloniais ─ sobretudo a partir da Batalha de Guararapes ─
até meados da década de 1950, quando são publicadas as “Memórias” do Marechal Mascarenhas de Moraes.
Mais que inventariamento e análise de obras literárias stricto sensu,
Cidade analisa aproximadamente quarenta títulos com caráter
especificadamente militar, formando uma suma das principais referências
sobre o tema. Enfrenta, cronologicamente, a evolução do nosso pensamento
técnico militar. Mas seu foco circunscreve-se ao âmbito da sinopse
crítica, ensaística e erudita, cuidando por objeto aqueles trabalhos
cujo conteúdo limita-se ao fazer prático da atividade bélica: a tática, a
estratégia, o recrutamento, uniformes, logística etc.
Porém, ainda que escassas — seja pela falta de novas edições ou
edições republicadas em número quantitativamente reduzido —, essas obras
memorialísticas merecem atenção imensa do pesquisador e historiador das
nossas tradições militares. Atenção merecida, sobretudo, pela dimensão
moral da consciência desses agentes.
Ressalta-se, como exemplo, a quase totalidade das obras escritas do
Visconde de Taunay — com destaque às suas “Memórias”, “Narrativas
Militares: Cenas e Tipos” e “Diário do Exército” — e aquelas
publicadas por iniciativa do Centro de Pesquisa e Documentação de
História Contemporânea do Brasil, responsável pela publicação de
depoimentos de importantes militares brasileiros, tais como Gustavo
Cordeiro de Farias — “Meio Século de Combate: Diálogo com Cordeiro de
Farias” —, Odilio Denys — “Ciclo Revolucionário Brasileiro” — e Ernesto Geisel. Não poderiam ser ignoradas as obras de Juarez Távora — “Uma Vida e Muitas Lutas”,
em três volumes —, Góis Monteiro — “O General Góis Depõe” —, e parte
dos trabalhos de Lyra Tavares, Ernany Ayrosa da Silva e Juracy Magalhães
e Souto Mallan. Em certo sentido, comparativamente, a preservação de
registros relacionados à Força Expedicionária Brasileira é profuso.
Essas obras, relatos em primeira pessoa, por trazerem consigo a
personalidade e caráter do elemento humano — partes indissociáveis não
apenas das narrativas históricas, mas da vivência daqueles que as
sentiram e perceberam —, permitem que as gerações subsequentes possam
compreender o passado numa clave que não apenas foge dos lugares-comuns
daquelas abrangentes e impessoais estruturas de análise — v.g. luta de classes, fim da história, infraestrutura e superestrutura, historicismo, Estado-nação etc.
—, mas possam elas integrar, no terreno da História, a responsabilidade
“individual” nascida daquele fundo subterrâneo e insubornável que é a
personalidade humana.
A importância das memórias está em que ao desprezar a presença da
individualidade daqueles que operaram imersos em situações
verdadeiramente acontecidas, a adoção daquelas estruturas de pensamento
provoca a perda ou desconsideração por aquilo que Von Herder — já no
séc. XVIII — chamava de "drama interior da humanidade". Indo além, sem
que o próprio historiador tenha incorporado em si mesmo valores
como sinceridade e unidade de consciência, atributos próprios do
indivíduo humano, é inútil querer reconstruir, apenas ideológica ou
documentalmente, os processos históricos sobre os quais se debruça.
Aqui, memória não é objeto, mas centro da consciência, vivência que perdura e floresce ─ é o “santuário amplo e infinit” que nos conta Santo Agostinho nas suas "Confissões". É a sinceridade que nos transmite Pedro Nava na epígrafe aqui utilizada.
Por certo, essa reconstituição do ocorrido requer do historiador não apenas acesso a determinadas fontes de informação (v.g. livros, mapas, documentos, dados primários etc.),
mas grande esforço imaginativo para se propor e reconstruir hipóteses,
hipóteses essas amparadas em profunda plausibilidade e razoável senso
das proporções. Nesse aspecto, as obras teóricas de José Honório
Rodrigues podem descortinar importantes perspectivas. No conjunto amplo e
diversificado dos seus escritos, uma parcela representativa dos seus
trabalhos — que resiste pioneira contra a passagem dos anos —
centralizou-se na delimitação específica da metodologia da pesquisa
historiográfica e acertada interpretação dos registros históricos.
Disciplina estritamente teorética — cujo conteúdo tem por objeto
caráter nitidamente epistemológico, ou seja, reflexão sobre as etapas,
limites e possibilidades do conhecimento humano —, o livro mais
representativo dessa categoria é o estudo "Teoria da História do Brasil:
Introdução Metodológica", de 1949. Ainda que cronologicamente antigo, constitui referência ainda oportuna e relevante.
Com o objetivo de capacitar o historiador, no exercício da pesquisa, a
distinguir o verdadeiro e o falso, o certo e o incerto, o duvidoso e o
admissível, fica claro que não é apenas através dos confrontos de dados
que a verdade histórica pode ser aperfeiçoada, mas de um esforço
imaginativo capaz de (re)construir, retroativamente, o sentido e pensado
por parte daqueles indivíduos e como eles integraram isso nas situações
por eles vivenciadas. O processo de humanização do agente histórico,
mais que um ângulo de análise e interpretação, é a própria substância da
qual História é parte integrante.