Tenente Coronel Oscar Medeiros Filho
Um traço do emprego militar em países em desenvolvimento, como é o
caso na América do Sul, é o envolvimento das Forças Armadas em
atividades “multimissão”. Diferentemente do padrão OTAN, as missões dos
exércitos dessa região envolvem, além do preparo para a guerra, o apoio
ao desenvolvimento nacional, bem como o suporte às diversas políticas
públicas. De fato, para esses países, a ideia de guerra e não guerra é
uma realidade muito anterior ao surgimento do neologismo “guerra de
amplo espectro”.
Atualmente, vários países buscam realizar processos de transformações
de suas Forças Armadas. Para além de uma simples modernização de seus
instrumentos de defesa, tal processo sugere mudanças radicais, na
estrutura e no emprego da força, limitadas ao orçamento disponível. A
transformação visa a adequar o uso da força ao atual ambiente de
segurança internacional que congrega ameaças de amplo espectro, desde
aspectos ligados a ilícitos transnacionais até o retorno dos
tradicionais contenciosos geopolíticos no tabuleiro internacional.
Muitos países têm se utilizado do acrônimo da moda para justificar a
necessidade de repensar os elementos de segurança e caracterizar o
ambiente: VUCA - volatility, uncertainty, complexity e ambiguity (em português, VICA: volatilidade, incerteza, complexidade e ambiguidade).
Constata-se que é da maior relevância para países que almejam um lugar de global player
no tabuleiro mundial (presumivelmente o Brasil), estar dotado de uma
força capaz de dissuadir interesses exógenos aos seus objetivos
nacionais, de “poder dizer não” e, assim, oferecer respaldo à sua
política externa. Nesse sentido, o notório retorno do Realismo e da
Geopolítica nas relações entre os Estados e o uso da força como
instrumento de política internacional sugere urgência para a discussão
de uma estrutura de defesa nacional compatível à envergadura geopolítica
do País.
Os modelos usualmente aceitos de um processo de transformação sugerem
novas tecnologias, novos ambientes operacionais, novas doutrinas, novas
estruturas organizacionais e nova mentalidade diante de um quadro com
baixo grau de certeza. Em tese, esses processos passariam,
primeiramente, por identificar novas doutrinas com foco nos conflitos
atuais e futuros para, posteriormente, reorganizar sua estrutura,
estabelecendo novos processos de aquisição e desenvolvimento de
equipamento militar.
Na discussão sobre tal transformação, é comum se comparar estruturas
de defesa, tendo como modelo países desenvolvidos (EUA, Reino Unido,
França etc.), acreditando-se ser possível emular tais estruturas visando
a ampliar o grau de dissuasão de nossas forças. É nesse momento de
comparação de nossa estrutura de força com países desenvolvidos que
surge um nó difícil de desatar: como País em desenvolvimento, o
significado da força aqui não diz respeito apenas à Defesa (coerção),
mas constitui também elemento fundamental no processo de construção
nacional. Historicamente, observa-se que o suporte ao desenvolvimento
nacional tem consumido muita energia das Forças Armadas no Brasil. Isso
se dá por meio de apoio de infraestrutura – construção de rodovias e
provimento de serviços públicos em áreas remotas –, como instituição
formadora e fiadora dos valores republicanos, e de emprego diverso em
atividades constabulares – monitoramento de fronteiras e garantia da lei
e da ordem.
Há uma considerável literatura que busca abordar de forma
diferenciada a trajetória do uso do instrumento militar em países em
desenvolvimento (Ayoob, 1995; Krause, 1996). Partindo-se de um modelo
clássico de Estado Nacional (Westphaliano), para os quais a
montagem de uma poderosa máquina de guerra foi fundamental em processo
de desenvolvimento, os referidos autores observam que, em países em
desenvolvimento, há uma série de desafios ao desenvolvimento
institucional do Estado Nacional. Estes desafios incluem a consolidação e
manutenção da ordem territorial sob o domínio da autoridade política e a
“paz social”. Se observarmos o nosso entorno, constatamos que, na
América do Sul, os exércitos se auto identificam como forças
“colonizadoras”. Para além da preparação para a guerra, esses exércitos,
a partir de um sentimento de “incompletude” do processo de construção
nacional, sentem-se na obrigação patriótica de servir como esteio ao
desenvolvimento nacional.
Podemos dividir a natureza desses desafios em dois diferentes
campos: a consolidação institucional do Estado e o desenvolvimento
econômico da Nação. Percebe-se nesses dois campos o envolvimento da
Defesa. No primeiro, pelo serviço militar obrigatório, por exemplo,
entendido como “escola de civismo” e nivelador republicano. No aspecto
econômico, observa-se uma estreita ligação entre “segurança e
desenvolvimento”, no qual as Forças Armadas são entendidas como suporte
do Estado.
Nesse sentido, um aspecto deve ser ressaltado: ao tratarmos da
transformação militar e de projeto de força em países em
desenvolvimento, corre-se o risco de apresentar o papel da tecnologia e
do desenvolvimento de programas militares como vetores de
desenvolvimento nacional e de mudança militar, mas sem, anteriormente,
pensar nos desafios doutrinários que demandaram novas tecnologias. Desse
modo, não seria a guerra futura e a mudança geopolítica que motivaria a
transformação militar, mas sim as novas tecnologias adquiridas como
vetor de desenvolvimento tecnológico e econômico. Inverte-se a equação
ideal da transformação militar.
No caso do Exército Brasileiro, materializa-se na busca de se atender
a contento a duas estratégias prioritárias: a dissuasão e a presença.
Tal dilema passa por um debate sobre de que forma entendemos essas duas
estratégias e quais são as implicações em termos de operações militares e
de operações subsidiárias.
Daí a grande questão presente e futura da transformação do Exército Brasileiro parece ser: como
compatibilizar um desenho de força voltado para ameaças do tabuleiro
geopolítico internacional com outro voltado para apoio ao
desenvolvimento, garantia da lei e da ordem e atuação cívico-social?
Esta parece ser uma excelente questão de debate sobre o futuro do
Exército e das Forças Armadas brasileiras nas próximas décadas. A
prontidão operacional e o elevado espírito de corpo são mandatórios
tanto para o atendimento das demandas do poder civil no apoio ao
desenvolvimento, quanto para o atendimento das demandas oriundas da
própria razão de ser de uma Força Armada: vencer as guerras nas quais o
País esteja envolvido.
Coautor: Prof. Msc Raphael Camargo Lima
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quinta-feira, 1 de novembro de 2018
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