O início do presente século testemunha um fenômeno entre as Forças Armadas do mundo inteiro: a busca por um processo de transformação. Essa demanda advém da confluência de uma série de aspectos que envolvem, por um lado, questões geopolíticas, como o fim da ordem mundial baseada na bipolaridade e o avanço da globalização impulsionada pelo desenvolvimento das tecnologias de informação e mundialização da internet, e, por outro, questões securitárias, especialmente pela ampliação vertiginosa de atores e ameaças transnacionais. Todos esses aspectos trouxeram impactos profundos no conceito de segurança nacional e, consequentemente, no emprego das Forças Armadas.
O contexto das últimas décadas do século passado constitui um ambiente disruptivo para o emprego militar. É interessante lembrar que foi o Exército Norte-Americano que, ainda nos primeiros anos da década de 1990, passou a denominar esse ambiente de VUCA (acrônimo inglês que expressa um contexto volátil, incerto, complexo e ambíguo). É nesse contexto que se abre um grande debate sobre o próprio conceito de segurança, ampliando-o por meio da adoção de novas dimensões (econômica, social, ambiental), para além da político-militar e de novos níveis de análise (individual e global), além do nível interestatal. A profusão de atores e ameaças tornou a ideia de emprego militar mais complexa, lançando mais “névoa” no entendimento do que pode vir a constituir um futuro campo de batalha.
Utilizando os EUA como modelo, podemos destacar, pelo menos, três paradigmas operacionais experimentados pelas Forças Armadas norte-americanas nas últimas três décadas.
O primeiro refere-se ao padrão adotado pelos EUA durante a primeira Guerra do Golfo em janeiro de 1991. Em vez de invadir e ocupar o Iraque, optou-se pelos “ataques aéreos cirúrgicos” a infraestruturas-chave, forçando Saddam Hussein a encerrar sua ofensiva contra o Kuwait. Diferentemente da guerra de atrito, as chamadas Operações Baseadas em Efeito buscavam, a partir da identificação do centro de gravidade do adversário, empregar o uso preciso da força, racionalizando recursos materiais e evitando perdas humanas.
Na década seguinte, na guerra contra o Afeganistão e na segunda Guerra do Golfo, o Exército Norte-Americano experimentou a dificuldade de ocupação de países fragilizados, que envolvia não só as operações militares clássicas, mas também uma série de demandas ligadas a missões humanitárias, ações de polícia, reconstrução de infraestruturas etc, que passaram a ser denominadas Operações de Amplo Espectro. Muito além das operações militares, esses novos contextos demandavam novas capacidades de gestão. Passou-se, então, a se falar de missões “de guerra” e de “não guerra”, que abrangiam a preparação e o emprego, além das operações militares clássicas, em atividades de garantia da lei e da ordem, relações públicas e contrainsurgência, dentre outras.
Com a crise financeira de 2008 e o retorno das disputadas geopolíticas entre grandes atores, o sentido de campo de batalha entre atores estatais volta a ganhar relevância. Além das operações nos domínios clássicos (marítimo, terrestre e aéreo), passa-se a incluir as dimensões cibernética e espacial. As chamadas Operações em Múltiplos Domínios passam a exigir novas capacidades militares que devem se adaptar a diferentes ambientes operacionais, tornando necessárias e relevantes as ideias de operações conjuntas e interagências. Trata-se, portanto, de uma tentativa de se juntar sinergia de esforços e convergência entre os diferentes domínios.
Nas últimas décadas, testemunhamos uma profusão de conceitos relacionados à defesa e ao emprego das Forças Armadas como “guerra híbrida”, “guerra de quarta geração”, “guerra assimétrica”, “insurgência criminal” e “falência territorial”, dentre outros. Tal profusão evidencia o esforço de militares, atores estatais e acadêmicos em disponibilizar ferramentas conceituais para a compreensão de cenários militares complexos.
Esse rápido passeio pelas três últimas décadas é suficiente para nos mostrar, em poucas palavras, o quanto o ambiente cambiante vivenciado nesse período sugere Forças Armadas novas e transformadas. Tal contexto, por si só, parece revelador da necessidade eminente (e iminente) de se transformá-las. Mas transformar em quê? Qual seria o escopo dessa transformação?
Afinal, o que seria transformação militar? Em primeiro lugar, é importante ressaltar que o debate sobre modernização militar precede até mesmo o fim da bipolaridade. Muito além dos paradigmas operacionais, esses debates buscavam discutir a estrutura e a organização das Forças Armadas. Podemos dizer que, na literatura sobre Defesa, esses debates tiveram origem em décadas anteriores, a partir da discussão sobre Revolução de Assuntos Militares (RAM).
No tocante à “transformação militar”, vários conceitos e muitas ideias passaram a ser adotados pela literatura especializada. No nosso entorno estratégico, um documento basilar desse debate teve por base o artigo “Três Pilares de uma Transformação Militar”, de autoria do brigadeiro chileno Jaime Covarrubias, publicado em 2007. A ideia seria entender as mudanças militares ocorridas na região a partir de três diferentes níveis: adaptação, modernização e transformação. Assim, a adaptação consistiria apenas em ajustar as estruturas existentes para continuar executando as tarefas previstas; a modernização envolveria a otimização das capacidades para cumprir a missão da melhor forma; e a transformação estaria relacionada ao desenvolvimento das novas capacidades para cumprir novas missões ou desempenhar novas funções em combate. Para o brigadeiro chileno, a transformação não se referiria apenas à obtenção de novas tecnologias (o que seria modernização), mas envolveria reformas profundas e mudanças de orientação na doutrina e na estrutura das forças. Transformar, em síntese, significaria alterar as concepções da Força, projetando-a para o futuro.
Tal concepção de transformação sugere um continuum no qual a transformação estaria na extremidade de maior mudança, em estágio mais avançado, e que iria além da adaptação e da modernização.
Em termos de discurso, o modelo de continuum das mudanças militares passou a ser rapidamente compreendido como parte de um processo de evolução “civilizatória” ocorrido nas últimas décadas, marcado por uma mudança de era e pela passagem de uma “sociedade industrial” para uma “sociedade informacional” – da era industrial para a era da informação.
Gostaríamos de chamar a atenção para dois aspectos que tornam complexa a adoção da ideia de transformação militar conforme o entendimento acima.
O primeiro aspecto diz respeito ao sentido substancial daquilo que se entende por transformação. A ideia de “reformas profundas” sugere um esforço radical de mudança que leve a Força a uma espécie de “metamorfose”. Ora, se utilizarmos exemplos da própria natureza para descrever o significado de metamorfose, podemos encontrar dois modelos distintos: um que envolve mudança substancial e um outro que se refere apenas à mudança de forma. O primeiro pode ser representado pela metamorfose que leva à transformação da lagarta em borboleta. Esse modelo certamente não serviria às Forças Armadas, que são instituições conservadoras e que mantêm valores fundamentais inegociáveis, e que são baseadas na hierarquia e na ordem.
Nesse sentido, vale a pena ressaltar que a conclusão do documento “O processo de transformação do Exército”, publicado em maio de 2010, pelo Estado-Maior do Exército Brasileiro, apresenta que “Três Pressupostos Básicos condicionarão a transformação: a valorização do Serviço Militar Obrigatório, a manutenção da Estratégia da Presença e a preservação dos valores e das tradições do Exército”.
O segundo modelo, formal, de metamorfose presente na natureza talvez esteja mais próximo daquilo que se deseja para as Forças Armadas. Trata-se do camaleão. Ele está sempre se adaptando ao meio, mas mantém intacta a sua substância.
O segundo aspecto a ser considerado diz respeito à ideia de transformação como um processo que sugere a mudança de A para B, em que é possível estabelecer um cronograma de atividade, tal qual um projeto em uma escala de tempo.
Imaginar um processo de transformação militar como algo que tenha começo, meio e fim, não parece realista. Afinal, em que momento se pode afirmar que uma Força Armada estaria “transformada”? O que nos permitiria dizer que atingimos a "era da informação"?
A grande questão é que, diferentemente da era industrial, em que havia uma certa permanência temporal de modelos como a era dos blindados, a era da aviação etc, na era da informação, a globalização tem sido marcada pela mudança constante e pela incerteza advinda, em muitos casos, do crescimento exponencial dos avanços tecnológicos. Em outras palavras, em um ambiente VUCA, transformar-se para alcançar o modelo desejável parece missão improvável.
Diante dessa constatação, parece-nos adequado tratar a ideia de “transformação militar” mais como um paradigma que busca absorver conceitos como flexibilidade e adequabilidade a contextos complexos do que de enxergá-la como um processo que conduz algo de A para B.
Em outras palavras, o fenômeno da transformação militar não seria uma espécie de metamorfose, mas um padrão de planejamento estratégico e gestão de defesa que, com capacidade de se adaptar e flexibilidade, incorpora as características de ambientes complexos para o preparo e emprego das forças militares.
Transformação militar sugere, portanto, um novo paradigma de planejamento de defesa que, considerando os desafios que o ambiente futuro trará para o emprego militar, busca desenvolver metodologias que permitam modelar estruturas militares capazes de operar em ambientes complexos, com flexibilidade, adaptabilidade e complementariedade.
Por fim, faz-se necessário ressaltar o fato de que, em decorrência da profusão de ameaças e atores que colocam em risco a segurança nacional, tornou-se inconveniente estruturar as Forças Armadas com base em “quem são as ameaças”! Ao invés disso, deve-se focar em “quais são os desafios” que envolvem o ambiente operacional do futuro. Esse é o sentido maior da mudança de um planejamento baseado nas ameaças para um planejamento baseado em capacidades. Talvez esse seja o principal elemento desse novo paradigma que temos chamado de “transformação militar”.
Sobre o autor
Cel QCO Oscar Medeiros Filho
É Bacharel e Licenciado em Geografia (UFMS, 1995). Possui mestrado em Geografia Humana (USP, 2005) e doutorado em Ciência Política (USP, 2010) e estágio de pós-doutorado em Relações Internacionais (UnB, 2018). Foi professor na EsPCEx, AMAN e Instituto Meira Mattos (ECEME). Atualmente é Coordenador de Pesquisas do Centro de Estudos Estratégicos do Exército e Professor de Relações Internacionais do Uniceub.
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