sexta-feira, 4 de junho de 2021

Defesa Alimentar: um passo além da segurança dos alimentos nas Forças Armadas*

 

Por Ten Cel José Roberto Pinho de Andrade Lima

Os conflitos armados marcaram a história, definiram fronteiras e delinearam a organização geopolítica do mundo como o conhecemos hoje. Um fator crítico sempre esteve presente nos campos de batalha, impactando o desfecho de algumas guerras: os aspectos higiênico-sanitários das tropas. Na I Guerra Mundial, morreram mais soldados por doenças e infecções de ferimentos em combate do que pelo confronto propriamente dito. Na II Grande Guerra, até 1945, quando já existiam antibióticos e diversas vacinas, muitos soldados ficaram fora de combate por conta de disenteria, tifo e infecção respiratória, reduzindo a capacidade operacional das tropas.

Já no século XXI, mesmo após inúmeras inovações tecnológicas e avanços na medicina, a diarreia segue como a mais importante etiologia infecciosa que leva as tropas dos EUA e de diversos outros países a baixas em combate (PORTER et al, 2017). No Haiti, durante os 14 anos de atuação da tropa brasileira na Missão de Paz da ONU, a gastroenterite foi um desafio permanente à capacidade operacional dos combatentes (DE ANDRADE LIMA, 2016). E onde estão essas ameaças invisíveis ao poder de combate? Estão no ambiente, nos alimentos e na água consumida nos quartéis e teatros de operações, sendo o fator humano um elemento essencial para barrar essas ameaças e reduzir os riscos biológicos.

A segurança de alimentos é constituída por métodos, técnicas, processos e equipamentos empregados para reduzir a contaminação “acidental” da água e dos alimentos. Essa doutrina é promovida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em toda a cadeia que produz, industrializa e manipula alimentos. No Brasil, essa atividade é normatizada e fiscalizada por órgãos como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), o Ministério da Saúde, o Ministério da Agricultura e seus congêneres nos níveis estadual e municipal. Nas Forças Armadas, a segurança de alimentos passou a funcionar de forma estruturada em 2005, com a publicação da primeira edição do Regulamento de Segurança Alimentar das Forças Armadas – Portaria SELOM 854/2005. Esse regulamento foi atualizado e transformado no Regulamento de Segurança dos Alimentos nas Forças Armadas - MD42-R01 (BRASIL, 2015). Anexo ao regulamento, consta um check list para a auditoria das condições sanitárias das diversas organizações militares (OM) que adquirem e manipulam alimentos e preparam refeições coletivas.

Tendo por suporte o Regulamento de Segurança dos Alimentos, o Comando Logístico do Exército Brasileiro (COLOG) estruturou o Programa de Auditoria em Segurança de Alimentos (PASA). Desde 2010, as mais de 400 unidades que possuem cozinhas e produzem refeições coletivas passaram a ser auditadas, pelo menos uma vez por ano, por equipes de auditores treinados pela Diretoria de Abastecimento, gestora dos suprimentos classe I na Força Terrestre. Com elevado índice de exigência, o PASA passou a certificar as OM que atingissem conformidade acima de 85% no check list de Boas Práticas de Fabricação (BPF), ou seja, externavam um elevado padrão higiênico no recebimento, armazenamento e preparo dos alimentos. Além de coordenar a auditoria e a certificação, o COLOG aplicou recursos financeiros na melhoria das condições estruturais dos ranchos e investiu na qualificação das equipes dos serviços de aprovisionamento. Nos primeiros anos, menos de 5% das cozinhas foram certificadas, mas, passados 10 anos, o PASA é um verdadeiro caso de sucesso, pois contribuiu para elevar o padrão de segurança dos alimentos no Exército Brasileiro, favorecendo a proteção da saúde da Força e a manutenção da operacionalidade.

A Força Aérea Brasileira (FAB), também com base no Regulamento de Segurança dos Alimentos nas Forças Armadas, implantou um programa de auditoria externa de segurança dos alimentos. Esse programa emprega empresas especializadas, contratadas para realizar a auditoria dos processos nas cozinhas das unidades militares. Essas empresas realizam, ainda, a coleta periódica de amostras dos alimentos produzidos submetendo-as à análise microbiológica. A investigação laboratorial permite confirmar se o alimento e a água servidos à tropa estão realmente inócuos e seguros. Periodicamente, a Subdiretoria de Abastecimento da FAB elabora um ranking das OM conforme suas classificações nas auditorias de processo e resultados laboratoriais.

Em 2001, os atentados terroristas nos EUA mudaram alguns paradigmas globais na área da Defesa. Percebeu-se que a cadeia alimentar poderia ser uma via muito vulnerável para ações intencionais. A OMS e os países desenvolvidos passaram a adotar uma nova postura na área de segurança dos alimentos, vigiando as ameaças de bioterrorismo alimentar. Essa nova abordagem considera não apenas os riscos de contaminações acidentais por agentes químicos, físicos ou biológicos, mas a introdução “intencional” desses agentes na cadeia de suprimentos. Para mitigar essas novas ameaças percebidas, foram estruturadas técnicas de mapeamento de riscos e protocolos de prevenção contra contaminações intencionais e fraudes, sendo estruturados Sistemas de Defesa Alimentar – Food Defense.

As primeiras iniciativas para implementar a defesa alimentar ocorreram nos EUA, ainda em 2002, organizadas pelos Departamentos de Defesa e Segurança Interna. Na sequência, a Agência de Vigilância Sanitária Americana - Food and Drug Administration (FDA) - reestruturou a área de segurança em todo o setor alimentício, inclusive nas exportações e importações, com a aprovação da Lei de Modernização da Segurança dos Alimentos - Food Safety Modernization Act (FSMA). Em paralelo, foram desenvolvidas metodologias de implementação e auditoria, como a Avaliação de Ameaças e Pontos Críticos de Controle (TACCP), a Avaliação de Vulnerabilidades e Pontos Críticos de Controle (VACCP) e a Análise de Perigos e Riscos com Base em Controles Preventivos - HARPC (PEIXOTO e DE MELO, 2019).

A norma internacional ISO:22.000 define os requisitos dos sistemas de gestão para garantir a segurança de alimentos. Em razão da defesa alimentar, foi editada uma norma complementar à ISO:22.000 - a Certificação do Sistema de Segurança dos Alimentos FSSC 22000 (Food Safety System Certification), focada na prevenção da contaminação intencional da cadeia alimentar. A União Europeia (EU) implementou diversas legislações reguladoras e normas de certificação, como a Britânica BRC Food versão 7 (British Retail Consortium), que se baseia na Padronização Internacional de Alimentos IFS Food versão 6 (PRAIA, 2017).

No Brasil, raríssimas indústrias implantaram protocolos de defesa alimentar, em geral por força de exigências contratuais e regras de exportação. De forma proativa, em 2018, o Ministério da Defesa (MD) incluiu um novo conteúdo na Doutrina de Alimentação e Nutrição das Forças Armadas - MD42-M-05, o Capítulo IV - Defesa Alimentar (BRASIL, 2018). Nesse capítulo, o tema foi abordado de forma sintética em apenas uma página, tratando sobre as considerações iniciais e os princípios gerais de defesa alimentar. Em mais um passo desse processo de incremento da capacidade de defesa alimentar, em 2019, a Chefia de Logística e Mobilização do MD instituiu o Grupo de Trabalho (GT) Defesa Alimentar, formado por especialistas em segurança de alimentos e nutrição do Exército, da Marinha e da Força Aérea, basicamente nutricionistas, veterinários, farmacêuticos e intendentes. O GT Defesa Alimentar, que teve suas atividades prorrogadas em 2020, tem como principal objetivo elaborar o Regulamento de Defesa Alimentar das Forças Armadas, instrumento que estabelecerá os requisitos essenciais à implantação da defesa alimentar no âmbito das Forças Armadas, respeitadas as particularidades de cada Força Singular (BRASIL, 2019).

A defesa alimentar está baseada na avaliação de risco e considera que a adulteração intencional do suprimento pode ocorrer em qualquer ponto da produção de alimentos, desde a propriedade rural até o prato do militar. Nos quartéis, nas operações e nas concentrações de tropa, um dos alvos potenciais para sabotagens e contaminação intencional são os reservatórios de água potável. As OM que possuam serviços de alimentação, ou que realizem atividades de recebimento, armazenamento, manipulação, produção, transporte, distribuição e consumo de alimentos, capacitarão equipes de defesa alimentar e elaborarão os Planos de Defesa Alimentar. Essas unidades serão auditadas, periodicamente, para verificar como estão protegendo o fornecimento de alimentos contra a adulteração intencional.

A implantação da defesa alimentar nas Forças Armadas significará um passo além da segurança dos alimentos. Essa nova etapa, que avança de forma lenta e gradual, significará uma importante evolução na cultura interna de segurança e na proteção da saúde das Força Armadas.

*Artigo publicado (em parte) no Núcleo de Estudos Estratégicos de Defesa e Segurança (NEEDS) da UFSCar, em 8 de outubro de 2020.

SOBRE O AUTOR

O Ten Cel José Roberto Pinho de Andrade Lima é Oficial Veterinário do Exército Brasileiro, servindo atualmente como Professores/Pesquisadores da Escola Superior de Guerra (ESG) - Campus Brasilia-DF. Realizou pós-doutorado em Saúde Global e Ambiental - concentração em Saúde Única, na University of Florida - Gainesville/EUA (2015-2016). Possui doutorado em Saúde Pública (ISC/UFBA, 2012), Mestrado em Ciências Veterinárias (Université de Montreal – Canadá, 2001) e Graduação em Medicina Veterinária (UFBA, 1995). Participou da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH), como Chefe dos Intérpretes e Oficial de Gestão Ambiental/Vigilância Sanitária do Batalhão Brasileiro de Força de Paz (2009-2010). Atuou em unidades militares dos Comandos Militares da Amazônia, Nordeste e Leste, entre outras nas áreas de Medicina Esportiva de Equinos, Segurança de Alimentos, Ensino Superior Militar, Gestão, Saúde Pública e Meio Ambiente. Desde 2019, integra o GT Defesa Alimentar/MD.


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