Por Subtenente Marco Antônio do Carmo Rodrigues
A tecnologia militar da atualidade muito
nos deslumbra. Na era da chamada inteligência artificial, com drones de
conduta quase autônoma, somos apresentados, a todo o momento, a
mecanismos cada vez mais rápidos e eficientes, fruto de um processo de
modernização contínua, que nos direciona a crer que a guerra será cada
vez mais curta e limpa. Vemos uma oferta abundante de recursos
tecnológicos, cada vez mais aperfeiçoados e diversificados, à disposição
dos Exércitos que puderem dispor de orçamentos suficientes por parte de
seus governos.
Porém, retratar essa realidade dinâmica e
não menos volátil, a era da informação, que nos liga por um chip, pode
oferecer uma visão supervalorizada sobre o real papel que a tecnologia
cumpre na chamada Guerra Moderna. Por outro lado, desde que o homem,
pelo uso da inteligência, sobrepujou aos demais animais na arena
africana, descortina-se uma evolução gradativa da aplicação dessa
capacidade na guerra desde tempos imemoriais. Trazendo esse atributo da
intelectualidade para a resolução de questões ligadas a conflitos, dá-se
a gênese da inteligência militar enquanto arma de guerra. Evidências
arqueológicas, cada vez mais frequentes, apontam para o peso
considerável do uso dessa arma nas vitórias dos hebreus em sua épica
marcha rumo à Terra Prometida, quando da fuga do Egito. Cartago, Roma,
Veneza, entre outros fariam corpo a essa tendência.
Pois bem, tecnologia ou inteligência
militar? Força e ferramentas para lutar ou o conhecimento do inimigo?
Analisando de forma bem genérica esses dois eixos evolutivos de
componentes distintos e essenciais da guerra, tecnologia e inteligência,
e trazendo esse debate mais para nosso tempo, podemos estabelecer uma
provocação: existe dissonância entre capacidade tecnológica e emprego de
inteligência militar, particularmente nos conflitos armados dos últimos
150 anos? E caso possamos dizer que sim, qual deve ser o peso desse
descompasso no resultado das últimas guerras, especialmente na
expectativa que se constrói quando uma força militar com vantajosa
tecnologia é empregada em campanha?
Quem se debruçar a analisar
superficialmente os conflitos bélicos desde que essa onda modernizadora
(mais especificamente desde o fim do século XIX) começou a se refletir
nos Teatros de Operações, pode se surpreender com um panorama ainda
pouco animador no que se refere à relação entre força mais tecnológica e
vitória no combate. Nesse decurso temporal moderno, ao invés de
conflitos rápidos e limpos, com ataques coordenados e exposição cada vez
menor de homens reais ao fogo inimigo, temos uma grande incidência de
atoleiros táticos inesperados com grandes morticínios. O cheiro de
“sangue e pólvora”, uma das experiências sensitivas mais dramáticas da
história humana, continua presente em todos os conflitos armados
deflagrados pelo mundo.
A empreitada norte-americana no Iraque,
intensificada em 2003 e prolongada por oito anos, é uma das mais
recentes faces dessa realidade. Há de se anotar aqui, também, a invasão
russa no Afeganistão (prologada por mais de oito anos) e a não menos
fatídica ação bélica encabeçada pelos EUA no Vietnã (estendida duramente
por mais de 10 anos). É evidente que tais conflitos não espelharam a
clássica simetria da guerra regular, uma vez que tanto estadunidenses
quanto russos (ficando aqui nos dois paladinos mestres) lutaram contra
combatentes irregulares, quer sejam islâmico radical quer sejam
mujahidins afegãos ou guerrilheiros comunistas norte-vietnamitas. Ainda
assim, não é notável que a disparidade entre o poder tecnológico de um
contra o “amadorismo” do outro lado não tenha sido decisivo para
abreviar as campanhas?
Mesmo que consideremos fatores mais
complexos que possam explicar, por exemplo, as causas da demora
extenuante na consecução dos mínimos objetivos norte-americanos no
Iraque, como a incapacidade de estabelecer alianças fiéis com uma
população tão alheia aos valores ocidentais, ainda assim a lógica não
apontaria dificuldades muito menores a serem enfrentadas? Abre-se uma
possibilidade para se especular o peso de erros analíticos crassos a
justificar tais resultados práticos inesperados.
A história das guerras no período
pós-Segunda Revolução Industrial sinalizou de forma quase inconteste que
a prevalência da tecnologia seria a tônica da guerra moderna. Em todos
os conflitos que opuseram partes tecnologicamente desproporcionais, os
resultados foram expressivos. Foi o que John Keegan chamou de “modo de
guerrear ocidental”. Desde as operações navais franco-britânicas nas
chamadas Guerras do Ópio (1839 e 1856), com uma potência mundial
sobrepujando uma China ainda aprisionada em sua cultura, passando pelas
operações navais e terrestres dos norte-americanos contra as possessões
coloniais espanholas (Guerra Hispano-americana) no Caribe e Filipinas,
na avassaladora derrota imposta por Israel às forças árabes lideradas
pelo Egito e pela Síria (Guerra do Yom Kippur, em 1973) ou mesmo a breve
e desastrosa aventura argentina no Atlântico Sul, resolvida pela Armada
Britânica em poucas jornadas (Guerra das Malvinas, 1982).
É inegável que tais exemplos, a despeito
da complexidade inerente a cada conflito (causas politicas, situação
operacional de cada lado beligerante, motivação estratégica, etc),
reforçaram o peso da tecnologia como componente indispensável a ser
usado na prática da guerra em si. Até mesmo se avançássemos o sinal e
nos aventurássemos a citar a hecatombe bélica da Segunda Guerra Mundial,
grosso modo, também poderíamos concluir ter sido decidida por fatores
tecnológicos relevantes. Ali também, e sobremaneira, poderíamos colher
exemplos estruturalmente táticos que reforçam esta questão de modo mais
amplo: o valor do uso eficiente da inteligência militar (ficando aqui
apenas nos momentos capitais, quer seja no planejamento e execução da
invasão da Europa pela Normandia, quer seja na genial decodificação do
código alemão do “enigma”) e o preço que se pagou quando se negligenciou
a ela (citando a aposta alemã na abertura de duas frentes, ocidental e
oriental, num crasso erro analítico conjectural, e a opção americana em
desconsiderar os alertas de iminente ataque japonês no pacífico, numa
demonstração excepcional de negligência preventiva).
Os conflitos exemplificados
anteriormente nos levam a duas constatações: de um lado a primazia da
tecnologia, de outro a dúvida sobre o quanto de aparato de inteligência
militar foi empregado e qual o peso disso no seu desenrolar. Não iremos
avançar ao campo da geopolítica, mas podemos questionar se o uso da
inteligência militar tanto na fase preparatória quanto durante a
consecução dos conflitos não foi, por diversas vezes, fatalmente
negligenciado.
Em 2017, os gastos militares globais
atingiram seu maior número desde o fim da Guerra Fria, em 1989. Mensurar
o quanto desse montante efetivamente foi empregado em ações de
inteligência militar não é nosso propósito, mas cabe deixar essa dúvida
como estímulo ao leitor. Os Exércitos da atualidade certamente têm (e
assim será por longo tempo) como modelo inspirador as tendências de
emprego de tecnologia militar do exército norte-americano, logicamente
que adaptando seus respectivos orçamentos a suas necessidades táticas e
situação geopolítica. Essa hegemonia referencial norte-americana se
explica facilmente pelo seu histórico de protagonismo, quer seja nas
duas guerras mundiais do século XX, quer seja pela vitória após quase
meio século de guerra fria com a Rússia.
Mas, mesmo numa nação em que os gastos
militares acabam sendo vitais para sua própria sobrevivência enquanto
potência hegemônica, como no caso dos Estados Unidos, existe
proporcionalidade tática entre investimento em tecnologia e uso de
inteligência militar? Seria possível estabelecer um lugar mensurável na
parcela de investimento dos Exércitos modernos (esses mesmos que miram
no modelo estadunidense) em inteligência militar frente ao custo
tecnológico? Ficou disposta aqui a constatação de que a qualidade do
material militar de que um exército dispõe não lhe garante a capacidade
de melhor usá-lo, nem a certeza do melhor momento e das formas mais
adequadas de emprego (isso sem falar da melhor das possibilidades, que é
aquela em que se consegue antecipar ações que evitem até mesmo a
necessidade de seu uso, poupando vidas e recursos essenciais).
Da História Militar brevemente visitada
aqui, podemos colher insights que nos estimulem a valorizar o
aperfeiçoamento tecnológico desde que lastreado por um proporcional e
crescente esforço de criação de uma mentalidade de inteligência militar,
permeada por medidas de segurança orgânica e disciplina institucional
militar no que se refere ao uso constante da contrainteligência.
De forma geral, inteligência militar
ainda se constitui num assunto mais privado, relegado aos bastidores
governamentais e, muitas vezes, a planos menos prioritários. Tomado
muitas vezes das referências saídas das páginas da história de países
não muito bem servidos de instituições bem consolidadas, e
estigmatizados como clandestino e oculto, o trabalho de inteligência
sofre constantemente de certa desconfiança, tanto da parte dos
contribuintes quanto dos governos para os quais lhe é servido. Certo é
que, amado ou odiado, o serviço de inteligência que também é uma peça
militar fundamental, deve ser entendido como necessário, assim como a
diplomacia e as demais formas de relações internacionais. E, a despeito
da necessidade de atualização tecnológica de suas Forças Armadas, também
deve ser encarado como parte fundamental de seu constante e permanente
esforço de garantia da soberania nacional e sua integridade territorial.