No último dia 1º de outubro, a Corte
Internacional de Justiça de Haia, principal órgão judiciário da
Organização das Nações Unidas, decidiu contrariamente à Bolívia, que
havia levado àquele tribunal, no ano de 2013, uma solicitação no sentido
de que o Chile fosse obrigado a negociar com a Bolívia uma solução para
que esta voltasse a ter uma saída soberana para o mar. A decisão pode
ser encontrada na página eletrônica do Tribunal, no endereço
https://www.icj-cij.org/files/case-related/153/153-20181001-JUD-01-00-EN.pdf
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A decisão evidentemente repercutiu
bastante na Bolívia. A Constituição daquele país, em seu artigo 267,
estabelece que “o Estado boliviano declara seu direito irrenunciável e
imprescritível sobre o território que lhe dê acesso ao Oceano Pacífico e
seu espaço marítimo. A solução efetiva do desentendimento marítimo
através de meios pacíficos e o exercício pleno da soberania sobre o dito
território constituem objetivos permanentes e irrenunciáveis do Estado
boliviano”. A decisão é também um revés político para o Presidente Evo
Morales, que mantém a aspiração de alcançar a saída para o mar como um
dos principais objetivos de sua política exterior.
Para entender o problema, é importante
relembrar sua origem. Chile e Bolívia tornaram-se independentes da
Espanha em 1818 e 1825, respectivamente. À época, a Bolívia possuía uma
costa de aproximadamente 400 km junto ao Oceano Pacífico, na Região de
Antofagasta. Em 1866 e 1874, os dois países estabeleceram tratados de
limites que confirmaram a saída boliviana para o mar.
Em 05 de abril de 1879, o Chile declarou
uma guerra à Bolívia e ao Peru, que ficou conhecida como Guerra do
Pacífico. A causa imediata do conflito foi o aumento dos impostos
cobrados pelo governo boliviano das empresas chilenas que exploravam o
salitre na região. Pelo entendimento do governo chileno, esse aumento
contrariava uma das cláusulas do tratado de limites de 1874. O Peru foi
envolvido na guerra em razão de um acordo que havia firmado com a
Bolívia, comprometendo ambos os países a se apoiarem mutuamente em caso
de guerra contra o Chile.
Ao final da guerra, em 1884, o Chile
havia conquistado a região costeira boliviana, bem como a região peruana
de Tarapacá. Em outubro de 1904, Chile e Bolívia celebraram um acordo
definitivo de paz. Por esse acordo, os territórios ocupados pelo Chile
durante a guerra seriam reconhecidos como chilenos “absoluta e
perpetuamente”. As fronteiras entre os dois países foram demarcadas e o
Chile se comprometeu a construir uma estrada de ferro ligando El Alto,
no platô andino boliviano, ao porto de Arica. Essa estrada foi
construída, sendo inaugurada em 1913. Além disso, o Chile garantiu à
Bolívia o direito de estabelecer agências aduaneiras nos portos de Arica
e Antofagasta, tendo “amplo e gratuito” direito de trânsito
comercial.Apesar do acordo, em 1919 a Bolívia apresentou ao Chile seu
pleito de reaver o território costeiro, independentemente do que havia
sido estabelecido no tratado de paz de 1904. Desde então, tal pleito foi
renovado inúmeras vezes, até os dias de hoje.
Outro fato relevante aconteceu em 1929,
quando Chile e Peru celebraram um acordo, no qual os dois países se
comprometeram a não ceder qualquer território a um terceiro país sem o
prévio consentimento da outra parte. Este pacto acabou sendo
determinante em 1975, quando o Chile e a Bolívia quase chegaram a um
acordo, que foi desfeito pela não aceitação dos termos pelo Peru.
Assim, o revés boliviano determinado
recentemente pela decisão do Tribunal de Haia é mais um que se soma a
uma grande série de derrotas diplomáticas, desde 1919. Mas de forma
nenhuma terá o condão de encerrar o assunto ou diminuir o ímpeto
boliviano de alcançar aquele que é um dos objetivos nacionais
permanentes, expresso em sua Constituição.
Há aspectos comerciais e econômicos
envolvidos. A Bolívia, como país mediterrâneo, sempre dependerá dos
países vizinhos para estabelecer seu comércio internacional. Altos
custos de transportes, infraestrutura inadequada, dificuldades
burocráticas no estabelecimento de negociações comerciais que envolvam
terceiros países, tudo isto constitui gargalos que impedem que o país
participe com mais efetividade do comércio internacional, dificultando
seu crescimento econômico.
Há também o aspecto do orgulho nacional,
ferido pela perda do território, que alimenta o desejo praticamente
unânime na população boliviana de reaver o acesso ao mar. E este
aspecto, que sempre foi relevante, torna-se ainda mais importante nos
dias atuais de instantaneidade na comunicação. Nas mídias sociais
bolivianas, o assunto, aglutinado em hashtags como as #MarParaBolivia e
#MarParaLosPueblos atingiram milhares de postagens nos dias seguintes à
decisão da Corte de Haia, galvanizando a opinião pública.
A decisão da Corte Internacional de
Justiça, embora não obrigue o Chile a negociar, lembra que as partes não
estão impedidas de continuar os diálogos e intercâmbios, que remontam à
década de 1920, na busca de uma solução para a questão.
O caso nos alerta para as questões
geopolíticas sul-americanas, no entorno imediato do Brasil. A busca
boliviana por recuperar uma saída para o mar, perdida em uma guerra do
século 19, é a reafirmação da importância que se deve dar ao estudo de
tais questões, em especial as que afetam um país com o qual temos quase
3500 km de fronteira. O General Carlos de Meira Mattos, autor de vasta
obra que merece ser mais bem conhecida pelos brasileiros, define em seu
livro “Geopolítica e Modernidade”, que a geopolítica é a “aplicação da
política aos espaços geográficos, sob a inspiração da história”. Parece
uma definição feita sob medida para o caso: um espaço geográfico antes
boliviano e agora chileno, no qual se travou uma guerra e que, há cem
anos, é objeto de disputa diplomática.