Por Cel Carlos Frederico Gomes Cinelli
“Os espiões são os personagens centrais de uma guerra. Sobre eles
repousa a capacidade de movimentação de um exército” (SUN TZU).
A literatura e o cinema ajudaram a cristalizar a percepção de que a
boa inteligência é aquela que se baseia essencialmente na espionagem.
Autores como Tom Clancy, Ian Fleming e Frederick Forsyth eternizaram
personagens dotados de múltiplas qualidades, requeridas tanto para
trabalhos de campo quanto para análise de informações. No mundo real,
sabemos que isso raramente funciona. Bons analistas são dotados de
atributos cognitivos que não têm a ver com a arriscada tarefa de
garimpar dados brutos cuja qualidade é diretamente proporcional à
periculosidade do ambiente em que estão diluídos. É o trabalho de
análise dos dados, por sua vez, que resulta no assessoramento preciso ao
tomador de decisão. Mas para que esse auxílio possa existir, é
necessário que os fragmentos de informação cheguem ao analista.
É curioso, portanto, que determinados “especialistas” em segurança
pública - profissão em franca e lucrativa expansão no Brasil -, ao se
expressarem sobre confrontos entre forças policiais e criminosos,
repitam mecanicamente, na ausência de argumentação mais concreta e
pragmática, que o problema da segurança pública no Rio de Janeiro é que
“falta inteligência”. Além de ser vocalizada de modo recorrente e quase
inconsciente, essa assertiva sugere também outra falácia: a de que a
fricção ocorrida entre facínoras armados de fuzil, entrincheirados em
fortalezas naturais, e os agentes policiais que tentam efetuar suas
prisões, poderia ter sido evitada se “houvesse mais inteligência”.
O emprego eficaz da inteligência não pressupõe ausência de confronto,
simplesmente porque o modo de obtenção da informação desejada é
dependente do comportamento do alvo que a retém, podendo ser ele (o
alvo) uma pessoa, uma emissão eletromagnética ou uma imagem de satélite,
por exemplo. É descabida a noção de que será sempre possível acessar um
dado importante, negado e protegido contra a difusão indiscriminada, de
modo insidioso e disfarçado, sem o ônus da superação de determinadas
barreiras físicas. Quando os obstáculos interpostos entre o agente e o
dado buscado se valem de meios violentos, como nos casos da atividade de
inteligência militar ou policial, não raro haverá fricção com
desdobramentos imprevisíveis. A própria doutrina de operações militares
contempla essa modalidade de obtenção de informações: o chamado
Reconhecimento em Força.
Novamente é interessante notar que, licenças poéticas e exageros do
cinema à parte, o próprio imaginário popular não só admite que um agente
de inteligência altamente hábil tenha “permissão para matar”, como
também enxerga, com naturalidade, o fato de que ele descarre sua arma
cada vez que a missão exige. Também é comum a confusão entre –
inteligência e investigação policial – como se fossem sinônimos. E como
se o primeiro estivesse restrito ao trabalho técnico de obtenção de
provas para instrumentalizar um inquérito, que é a essência do segundo.
A História Militar é pródiga em exemplos de como o emprego prévio da
inteligência foi decisivo para as fases posteriores das campanhas,
quando as operações de vulto são deflagradas. Embora a glamourização e a
escassez de exemplos conhecidos deem grande destaque à espionagem sutil
como técnica de inteligência, o fato é que dezenas de milhares de
agentes - civis e militares - tombaram em decorrência de confrontações
armadas, quer na tentativa de manutenção do disfarce, quer no
patrulhamento ostensivo atrás das linhas inimigas. O próprio Direito
Internacional dos Conflitos Armados, realístico por natureza, admite a
existência da atividade de espionagem como ação basilar para o sucesso
das operações militares, embora não estenda ao espião capturado em ação a
proteção do Estatuto do Combatente. Como se sabe, grande parte dos
países pune a espionagem de modo severo, em alguns casos com a pena
capital.
A operação do Comando Conjunto da Intervenção Federal nos Complexos
do Alemão, Penha e Maré, no dia 20 de agosto, foi didática no sentido de
demonstrar dois aspectos. Primeiro, o emprego integrado de diferentes
abordagens da atividade de inteligência, que permitiu tanto efetuar
prisões em flagrante, sem nenhum disparo sequer, quanto mapear
preliminarmente os principais pontos de interesse no terreno. Segundo, o
grau de irracionalidade da criminalidade carioca que ultrapassa todos
os limites do razoável: mesmo cercados por 4.200 homens, 20 blindados e 3
aeronaves, os criminosos se recusaram a aceitar a rendição oferecida,
partindo para um confronto em meio à população civil inocente. O saldo
indesejável de 8 óbitos - 5 bandidos e 3 militares do Exército -
somente reforça o fato de que, não fosse a sinergia obtida pelas
inteligências militar e policial, certamente o desfecho teria sido ainda
mais doloroso e lamentável. Nota-se que houve também, de modo concreto,
a aplicação das três funções operacionais básicas: sensoriamento
(coleta e busca de dados), processamento (análise dos dados e tomada de
decisão) e atuação (uso legítimo da força).
Embora tenha caráter atual, seja abrangente e esteja alinhada aos
objetivos do Estado brasileiro, a Política Nacional de Inteligência
(Decreto nº 8.793, de 29 de junho de 2016) não visualiza a possibilidade
de que agentes possam, no decorrer da busca sigilosa de dados, obter
uma excludente de ilicitude na prática de eventuais atos que, mesmo
estando tipificados como crime, sejam indispensáveis à sustentação de
seu personagem na organização ou atividade que tenta escrutinar.
Obviamente isso esbarra em questões sensíveis de limites éticos
indispensáveis ao exercício do poder no Estado Democrático de Direito,
mas é uma possibilidade que poderia ser trazida à discussão quando se
fala em eficácia da atividade de inteligência com fins de proteção da
sociedade. Infelizmente, o que temos visto é uma discussão ideologizada e
a cegueira epistêmica de certos especialistas que disseminam absurdos
como: “o que falta à inteligência é mais transparência”.
Nada no juramento feito pelos policiais e militares os obriga a
sublimar seu instinto básico de autopreservação, sobretudo em face de um
fora da lei armado de fuzil que, negando-se à rendição oferecida, atira
impiedosamente contra eles. Isso nada tem a ver com inteligência.
Trata-se de uma resposta proporcional e legítima contra indivíduos
cruéis que se acostumaram a atacar policiais outrora enfraquecidos e
compreensivelmente desmotivados, devido ao abandono a que foram
submetidos por décadas de negligência e descaso.