Por Guilherme Otávio Godinho de Carvalho_ Coronel R1 de
Artilharia do Exército Brasileiro.
Guilherme Otávio Godinho de Carvalho,
Coronel R1 de Artilharia do Exército Brasileiro. Atualmente é Analista do
Centro de Estudos Estratégicos do Exército, vinculado à 3ª Subchefia do EME.
Mestre em Ciências Militares (ECEME - 2005/2006) e Mestre em Relações
Internacionais (UnB - 2017/2018). Especialista em Inteligência Militar
(EsIMEx), Política e Estratégia de Defesa (William J. Perry Center, NDU) e Relações
Internacionais (UnB). Foi Oficial de Inteligência do Batalhão de Infantaria de
Força de Paz junto à Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti
(MINUSTAH), Analista do CIE, Assessor Militar no MD e Comandante da Base de
Administração e Apoio do CMP.
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Ao findar a segunda década do século XXI, o mundo se depara com uma pandemia causada por um vírus. A COVID-19, não obstante se apresentar como um imenso desafio para a saúde pública internacional, perpassa (e muito) as discussões no campo da ciência, infringindo aos mais variados segmentos das relações humanas desdobramentos até agora não mensuráveis na sua plenitude. Diante de uma plêiade de incertezas e questionamentos, parece emergir a ideia do afloramento de um mundo diferente deste que vivemos. Nesse contexto, é objeto deste trabalho expor algumas reflexões acerca das implicações da crise da COVID-19 para as relações internacionais contemporâneas, apresentando ao leitor uma indagação central: seria a atual crise um teste para o sistema internacional?
Prognósticos de longo prazo, quando elaborados no calor dos acontecimentos, não costumam ser muito precisos. Ainda que a chamada “névoa da guerra” dificulte a interpretação perfeita dos fatos, destacadamente pelo imenso volume de informações disponíveis (e pela inevitável manipulação destas), faz-se necessário buscar, de forma ordenada e seletiva, a construção de futuros possíveis. Identificar e avaliar óbices e oportunidades – objetos fundamentais para a formulação das estratégias centrais para o inexorável enfrentamento do que ainda está por vir – é o dever de casa a ser feito. O verbo a ser conjugado, desde sempre, é “planejar”.
As facilidades advindas da evolução tecnológica, da redução dos custos operacionais dos segmentos de transportes e – não menos importante – da concertação entre os Estados simplificaram, lato sensu, o trânsito e a movimentação das pessoas em boa parte do planeta. A rapidez com a qual o vírus se espalhou (e continua se espalhando) trouxe à tona, da pior maneira, reflexões acerca da temática. O nacionalismo radical, alimentado pela xenofobia, recebe oxigênio em meio à crise de saúde provocada por um vírus que, tragicamente, pode ocasionar a falência respiratória no ser humano. E sem escolher nacionalidade. É previsível o incremento de ondas migratórias no pós-pandemia. E a origem será a de sempre: Estados falidos (guerras, ditaduras, violência, etc.).
Fechamento de fronteiras, endurecimento da circulação de nacionais e aplicação de requisitos adicionais para a emissão de vistos para estrangeiros são algumas das medidas adotadas por um relevante conjunto de países. Em que pesem os efeitos positivos imediatos para o controle da disseminação do vírus, a eventual adoção de procedimentos mais restritivos à circulação das pessoas, após a crise de saúde pública, tende a enfraquecer aquele que é um dos pilares do mundo globalizado. A narrativa nacionalista – e suas variáveis populistas – poderá se fortalecer. Por quanto tempo, não se sabe. Ainda que o predomínio pela busca de soluções nacionais prevaleça, é profundamente incerto que essa “volta para dentro” seja uma realidade duradoura. Imagina-se precoce decretar a morte de um mundo interconectado, até mesmo porque a própria pandemia é prova de nossa interdependência. O mundo continuará “pequeno”?
Em qualquer cenário, o inevitável choque econômico global é um dos mais visíveis objetos de tensão, exigindo dos governos as mais variadas medidas para contornar os estragos provocados (os imediatos e os que estão por vir). A amplitude alcançada pela integração econômica mundial foi colocada à prova pela crise do novo coronavírus, que expôs, em alto grau, as facetas negativas da interdependência econômica. Cadeias de suprimentos globais complexas – e toda a logística a elas atrelada – escancararam vulnerabilidades da economia internacional, expondo a hiperdependência do mundo em relação à China. É razoável inferir a ocorrência de uma remodelagem na arquitetura produtiva mundial, com reflexos diretos para o comércio global.
No que pese a obviedade, a linha de ação mais provável para mitigar os efeitos do quadro descrito deverá passar pelo incremento da internalização de cadeias de suprimento, em especial daquelas mais afetas a setores estratégicos. Entretanto, tal expediente não estará acessível a todos os condôminos. A já conhecida realidade acerca da heterogeneidade das capacidades de reação dos países, caracterizada pelas assimetrias econômicas, tecnológicas e sociais se imporá. Dessa feita, observaremos o aprofundamento das vulnerabilidades dos países em desenvolvimento frente aos mais desenvolvidos. Reservas de mercado deverão impulsionar a disputa por espaço na arena do comércio internacional, que ficará ainda mais restrita ao “clube dos grandes”. O mundo será mais desigual?
Frente à dimensão e à transversalidade dos desafios que ora se apresentam em razão da crise da COVID-19, é possível identificar a relevância do papel do Estado na mitigação dos efeitos imediatos a ela atrelados, assim como a inevitabilidade do seu protagonismo na indução do processo de recuperação pós-pandemia. A responsabilidade das lideranças políticas frente às inúmeras adversidades que ainda se apresentarão é demasiada. Às inevitáveis cobranças por ações efetivas por parte de seus cidadãos e grupos de pressão diversos (campo interno) somam-se variáveis externas que demandam articulação política internacional por parte dos governos (campo externo).
Ainda que tenhamos observado a prevalência de esforços individuais por parte dos Estados, caracterizando a preponderância da busca por soluções nacionais em detrimento dos ajustes multilaterais, é incerta a efetividade da manutenção de tal postura. Henry Kissinger (Wall Street Journal, Abr 2020) alerta que nenhum país, nem mesmo os Estados Unidos da América (EUA) poderá, por meio de esforço puramente nacional, superar o vírus. “O atendimento às atuais necessidades deve, em última análise, ser associado a uma visão e a programas colaborativos globais”. Do conjunto significativo de incertezas, uma verdade parece emergir: uma gama países, em especial os menos desenvolvidos, não conseguirá se reerguer sem ajuda e cooperação internacional. Nesse contexto, qual será o papel das organizações internacionais multilaterais? O momento seria oportuno para o (re)fortalecimento ou aprofundamento do descrédito?
Em momentos de crise, a emergência por ações políticas pertinentes, relevantes, oportunas e eficazes demanda centralidade de comando e efetiva capacidade de coordenação por parte dos governantes. Em síntese, os Estados terão que botar à prova a eficiência de suas instituições. No campo interno – no que tange às democracias liberais – a eficácia das medidas tomadas será, grosso modo, avaliada por seus cidadãos (eleitores e pagadores de impostos) que, em períodos de crise e instabilidade econômica, tornam-se mais sensíveis (e dependentes) às repercussões das ações estatais. No campo externo, a interação entre os Estados será balizada não só pela tradicional diplomacia, que trabalhará pela cooperação e a concertação, mas também pela capacidade de fazer prevalecer seus interesses, fazendo uso, eventualmente, dos seus recursos de poder. Por conseguinte, vivemos (mais uma vez) um momento de confirmação da figura do Estado como ator central das relações internacionais. O mundo se tornará mais conflitivo?
No que pese a incerteza quanto à precisão dos números divulgados pelo governo chinês, as estatísticas ora disponíveis apontam para uma incipiente recuperação, inferindo o início do retorno à normalidade. Wuhan, capital da província da China Central e primeiro epicentro da COVID-19 saiu, em 7 de abril, do regime de quarentena. Na esteira dos acontecimentos, o governo daquele país vem sofrendo críticas por parte de segmentos da comunidade internacional. Negação inicial quanto à ocorrência da transmissão viral e letargia no trato dos seus desdobramentos são as mais recorrentes. No intuito de neutralizar os efeitos das mencionadas acusações, o Presidente Xi Jinping ordenou o desencadeamento de uma ofensiva mundial de soft power. Medidas de ajuda à Europa, Oriente Médio e América do Sul abrangem desde apoio técnico especializado em saúde, até doação de testes de detecção e equipamentos médicos. A estratégia para resgatar a imagem do gigante asiático e conquistar a confiança internacional recebeu a simbólica alcunha de “Diplomacia da Máscara”.
Ainda que permaneça alguma controvérsia, a origem muito provável do novo Coronavírus foi a China. Em torno dessa discussão, estabeleceu-se uma batalha pelo domínio da narrativa, notadamente entre os (EUA) e a nação asiática. A troca de acusações entre os dois países acirrou a tensa rivalidade entre as duas maiores potências do planeta, agravando o ambiente de incertezas que envolve as relações internacionais na atualidade. Ainda que seja prematuro afirmar, a crise da COVID-19 reúne potencial para alterar, com restrições, a distribuição básica do poder internacional, com possível atrofia da influência dos organismos multilaterais e eventual degradação da liderança dos EUA. Outrossim, tem aptidão para acelerar, ainda que de forma relativa, o processo de transição hegemônica Ocidente-Oriente. A balança de poder mundial está se alterando?
Da resumida apresentação de algumas incertezas medulares quanto aos inevitáveis impactos da crise da COVID-19 sobre o sistema internacional, conclui-se acerca da importância do planejamento (lato sensu) e da definição, por parte dos Estados, das estratégias decorrentes. No faseamento desse processo, os desafios concentram-se, inicialmente, na prevenção dos danos mais visíveis e diretos aos seus cidadãos e às estruturas do Estado (saúde, infraestrutura, logística, economia, etc.), bem como na mitigação dos seus efeitos nefastos mais imediatos. Ademais, e não menos importante, caberá aos Estados, desde já, assumir a responsabilidade por traçar a direção a ser seguida no futuro próximo, pós-pandemia.
Voltando à pergunta inicial, parece claro que a atual crise da COVID-19 é um teste para o sistema internacional. John Allen (Foreign Policy, Mar 2020) destaca que a História será escrita pelos “vencedores” da crise. “Os países que perseverarem – tanto em razão da virtude de seus sistemas políticos e econômicos, quanto na perspectiva da saúde pública – terão sucesso sobre aqueles que experimentarem resultado diferente e mais devastador”. A tenacidade e a obstinação, quando acompanhadas de boas estratégias, tendem a produzir bons resultados. Que sejamos capazes de aprender a lição.